Com a invasão russa à Ucrânia e a forte reação dos Estados Unidos e da Europa às ações de Vladimir Putin, observam-se importantes e decisivas mudanças na geopolítica global. Mas, para o historiador britânico Niall Ferguson, a democracia deve prevalecer como modelo dominante em todo o mundo.
“A maioria das pessoas no mundo, tendo a possibilidade de escolher, preferiria aceitar a democracia com toda a sua bagunça, complexidade e decepções do que seguir a China rumo a um novo tipo de totalitarismo”, afirmou o especialista em entrevista à BBC News Brasil.
“Por isso, minha esperança é que a democracia prevaleça.”
Segundo Ferguson, que é pesquisador da Universidade de Stanford, na Califórnia, e já foi professor em Harvard, Oxford e na London School of Economics, as democracias resistiram muito bem até o momento porque são “economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes”.
“Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientes de que isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo”, diz o autor de 16 livros, dos quais seis se tornaram best-sellers.
Na entrevista concedida em 24 de março, o historiador que será um dos palestrantes especiais do Fórum da Liberdade 2022, tratou também das muitas possibilidades para o futuro do conflito na Ucrânia que, segundo ele, pode durar anos até que o país seja reduzido a escombros.
‘Minha esperança é que a democracia prevaleça’, diz Niall Ferguson
Imagem: BBC
“Meu medo é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformará em um país independente que foi amplamente despovoado”, avalia.
De acordo com Ferguson, o mundo deveria estar preocupado com “o perigo da guerra na Ucrânia se transformar em um confronto maior e, potencialmente, em uma guerra nuclear”.
À BBC News Brasil, o historiador disse ainda esperar um futuro brilhante para o Brasil, desde que o país consiga superar o choque da pandemia, impulsione reformas e se mantenha como economia de mercado.
“O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais, sua população e seu ambiente de negócios cada vez mais favorável ao mercado”, diz.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Niall Ferguson à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Estamos realizando esta entrevista no dia 24 de março, ou seja, um mês depois do início da guerra na Ucrânia. O senhor acredita que ainda há espaço para uma resolução diplomática?
Niall Ferguson – Tem que haver. As guerras geralmente terminam quando há um impasse que leva a negociações ou quando um lado é derrotado. No momento, não há sinal de uma vitória decisiva ou de um impasse definitivo. Creio que provavelmente ainda teremos mais algumas semanas de guerra pela frente.
Mas estamos chegando a um ponto em que será muito difícil para a Rússia manter sua iniciativa, pois suas linhas de suprimento estão sobrecarregadas, o país sofreu muitas baixas importantes para uma guerra tão curta e o ritmo de seus avanços claramente diminuiu. É difícil ver Kiev caindo tão cedo. Portanto, espero que negociações sérias comecem quando os russos realmente não puderem avançar mais.
E já podemos ver os contornos de um acordo em alguns aspectos. Está claro que a Ucrânia não vai se tornar um membro da OTAN e será um país neutro, mas com garantias de segurança de algumas potências externas. A parte difícil está na divisão territorial, porque a Ucrânia teve um desempenho superior até agora e há um sentimento de que o país não deveria fazer concessões reconhecendo a anexação da Crimeia de 2014 ou cedendo [as províncias separatistas de] Donetsk e Luhansk. E esse é o problema com as guerras: quanto mais duram, mais difícil se torna chegar a um acordo, porque muitas vidas foram perdidas e as apostas aumentaram.
Me preocupo que tenhamos perdido a oportunidade de acabar com essa guerra há duas semanas e que tudo só tenha ficado mais difícil desde então. Também tenho sentido falta da presença dos Estados Unidos nas negociações. Creio que será difícil chegar a qualquer tipo de cessar-fogo ou acordo de paz até que os EUA estejam diretamente envolvidos.
BBC News Brasil – Como o senhor acredita que os historiadores no futuro verão o momento atual? Como os principais personagens dessa guerra serão retratados nos livros de história?
Ferguson – Os futuros historiadores podem dizer foi assim que a Terceira Guerra Mundial começou. Em outras palavras, eles podem comparar a situação atual com a de 1939 na Europa, quando a Polônia foi invadida após receber promessas de apoio das potências ocidentais que provaram ser praticamente inúteis. Ou então dirão que esta foi a primeira ‘guerra quente’ de uma segunda Guerra Fria. Eu tendo a acreditar mais nessa segunda analogia, pois creio que já estamos na vivendo a segunda Guerra Fria. Acho que a Ucrânia é hoje o que a Coreia foi para a primeira Guerra Fria.
Mas há muitas outras analogias que podem ser mais apropriadas. A verdade é que não se pode escrever a história com antecedência, tudo o que se pode fazer é oferecer cenários com mais ou menos plausibilidade e tentar atrair probabilidades. E o que acontece a seguir dependerá muito da China, assim como dos Estados Unidos.
Temo que a guerra possa durar anos e a Ucrânia seja reduzida a escombros, diz Neill Ferguson
Imagem: Reuters
Meu medo – e esta é a última observação que farei – é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformará em um país independente que foi amplamente despovoado.
BBC News Brasil – Como esse conflito afeta o confronto entre EUA e China e a posição de Pequim em relação a Taiwan?
Ferguson – Do ponto de vista do governo [americano de Joe] Biden, a China é mais importante do que a Rússia em ordem de magnitude. Creio que há uma crença em Washington de que se a situação atual na Ucrânia acabar mal para [o presidente russo Vladimir] Putin, isso impedirá a China de tentar assumir o controle de Taiwan.
Há relatos de que a China planejava invadir Taiwan já em outubro deste ano e isso provavelmente não ocorrerá mais depois dos últimos acontecimentos. Mas não acho que o país vá desistir da ideia, porque Xi Jinping fala sobre isso há anos e quer inclusive estender seu mandato para dar continuidade ao plano.
Mas este é o momento da verdade para a China, pois se Xi Jinping está mesmo decidido a assumir o controle de Taiwan não pode demorar muito. Nos próximos anos, o Ocidente vai aprender muitas lições com a Ucrânia e vai armar Taiwan até os dentes para impedir uma invasão da China.
BBC News Brasil – E o resto do mundo? Haverá uma mudança nas forças geopolíticas após o conflito?
Ferguson – Já estamos vendo uma tremenda mudança ocorrer com a demonstração de força e unidade do Ocidente. A importância da Otan também foi realçada, pois afinal de contas nada do que estamos vendo hoje aconteceria se a Ucrânia já estivesse na aliança. A outra grande transformação que observo é a aproximação entre Rússia e China. Se eu estiver certo, estamos vivendo uma segunda Guerra Fria – e está bem claro quem está do lado de quem no Hemisfério Norte.
Mas ainda há algumas alguns quebra-cabeças na região sul. No Oriente Médio, o Irã está do lado da Rússia e da China, enquanto os Estados árabes e Israel se mostram desapontados com a política do governo Biden de tentar ressuscitar o acordo nuclear iraniano. Já a Índia, que deveria ser uma aliada americana, não está interessada em tomar partido contra a Rússia. E cada vez mais países da Ásia estão se perguntando: importa mais a uma aliança com os EUA em prol da segurança nacional ou uma aliança com a China pelo bem da economia? Essa é uma questão para o Brasil e muitos outros países da América Latina também.
Felizmente, o Brasil está longe do conflito e pode adotar uma abordagem mais relaxada, evitando escolher lados. Há inclusive vantagens, pois o aumento dos preços das commodities pode ser uma boa notícia economicamente. Mas a desvantagem é que a inflação não para de subir em todo o mundo e pode ser uma dor de cabeça.
BBC News Brasil – No início dos anos 2000 falava-se muito sobre a ascensão econômica de países como Brasil, China, Rússia, Indonésia e outros. Na sua opinião, essa ainda é uma possibilidade?
Ferguson – Sempre fui um pouco cético em relação aos Brics e as teorias de que Brasil, Rússia, Índia e China eram as economias do futuro. Quando adicionaram a África do Sul foi ainda mais difícil de acreditar. Meu principal argumento é que há diferenças enormes entre a China e os outros. O crescimento chinês pôde ser sustentado e envolveu a criação da maior economia industrial do mundo. Estamos vendo uma desaceleração causada por fatores demográficos e pelo peso da dívida, mas ainda é concebível que a China possa ser a maior economia do mundo nos próximos 10 ou 20 anos.
A situação dos demais Brics sempre foi diferente. A Índia tem grandes problemas com sua população grande, porém pouco educada, e provavelmente não se tornará uma potência manufatureira como a China se tornou. Já a Rússia preferiu ressuscitar seu império por meio da força militar e se fechou para a economia global como resultado dos eventos das últimas quatro semanas.
A situação do Brasil sempre foi distinta. O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais, sua população e seu ambiente de negócios cada vez mais favorável ao mercado.
O Brasil de hoje é muito diferente daquele da minha infância nos anos 1960 e tem um caminho relativamente brilhante pela frente. Estou otimista sobre os rumos do Brasil caso o país consiga superar o choque da pandemia, aproveitar algumas das reformas que estavam sendo feitas no início do mandato do presidente Bolsonaro e lembrar à sua população que tem um futuro excepcional como economia de mercado.
BBC News Brasil – O pensamento Ocidental permanecerá dominante nas próximas décadas?
Ferguson – Uma das grandes lições que a História nos ensinou é que existem alternativas à democracia, ao livre mercado e ao Estado de direito. O único problema é que elas não são boas alternativas. Podemos experimentá-las, inclusive mais de uma vez, mas o resultado será sempre o mesmo. Uma sociedade que restringe a liberdade será uma sociedade menos inovadora do que uma sociedade que permite a liberdade.
Não estou dizendo que o modelo americano seja perfeito. Há muitas coisas erradas nos Estados Unidos – às vezes olho para nossa política e nossos debates culturais e me desespero, porque usamos nossa liberdade para dizer coisas sem sentido. Mas sempre vou concordar com Winston Churchill, que disse que a democracia era o pior dos sistemas políticos, à exceção de todos os demais.
BBC News Brasil – Mas veremos a democracia prevalecer nos próximos anos ou novos regimes autoritários e antidemocráticos ganharão força?
Ferguson – As democracias resistiram muito bem até agora. Periodicamente ouvimos dizer que elas estão em recessão, mas não é como se o autoritarismo tivesse ganhado muito espaço desde a década de 1990. Houve uma enorme onda de democratização após a queda da União Soviética. Mesmo que a Rússia e algum países do antigo bloco soviético tenham recuado, outros se saíram tremendamente bem, particularmente aqueles como os Países Bálticos que entraram na União Europeia.
Se olharmos para o mundo com cuidado, veremos que as democracias são economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes e que as opções autoritárias são muito menos atraentes. Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientes de que isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo.
Uma das razões pelas quais os chineses conseguiram bloquear e controlar a propagação da covid foi justamente o poder draconiano que o Partido Comunista tem sobre a vida cotidiana. A China tem um sistema de vigilância que invade a liberdade individual de maneiras que nós, nos países ocidentais, consideraríamos intoleráveis. Portanto, não creio que existam muitos países que estejam realmente ansiosos para aderir a um sistema de governo de partido único e vigilância total.
A maioria das pessoas no mundo, tendo a possibilidade de escolher, preferiria aceitar a democracia com toda a sua bagunça, complexidade e decepções do que seguir a China rumo a um novo tipo de totalitarismo. Por isso, minha esperança é que a democracia prevaleça.
BBC News Brasil – Na sua opinião, onde a América Latina e o Brasil se encaixam nesse mundo dividido entre Oriente e Ocidente?
Ferguson – Hoje em dia são as perguntas fáceis que as pessoas parecem achar mais difíceis. É claro que a América Latina faz parte do Ocidente. Assim como a América do Norte, o continente foi colonizado por europeus e suas instituições foram essencialmente importadas da Europa Ocidental. Apesar das instituições de Portugal e Espanha serem diferentes daquelas da Inglaterra ou França, o ponto de origem é muito semelhante.
As Américas como um todo são, em muitos aspectos, a parte mais dinâmica do que chamamos de mundo Ocidental. E estou relativamente otimista sobre o que pode ser alcançado na América Latina nas próximas décadas desde que as pessoas não se esqueçam das lições da História e não apostem mais uma vez em experimentos socialistas que sempre fracassam economicamente. Como economia de mercado, a América Latina tem muito a seu favor.
Contanto que se invista na educação e se proporcione às pessoas que nascem na pobreza a chance de sair dela, o futuro de um país como o Brasil deve ser muito brilhante. Considerando minhas chances de uma vida pacífica e próspera, eu certamente preferiria nascer hoje no Brasil do que no Leste Europeu.
BBC News Brasil – Segundo o Banco Mundial, a pandemia ampliou a desigualdade de renda mundial. O senhor disse no passado que a crise financeira de 2008 ajudou a abrir os olhos das pessoas para o tema. O que será preciso agora para que a redução da desigualdade volte a ser importante para a população e para os governos?
Ferguson – Acho que é justo dizer que a desigualdade subiu na hierarquia de relevância com a pandemia. Em alguns países, houve uma mudança em direção à esquerda na política. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos em 2020 – a covid-19 foi a razão pela qual Donald Trump não foi reeleito. E isso provavelmente vai acontecer no Brasil também.
Portanto, talvez a principal consequência da pandemia tenha sido deslocar a política um pouco mais para a esquerda e, dessa forma, aumenta-se a probabilidade de políticas fiscais mais redistributivas.
BBC News Brasil – O senhor afirmou no passado que muitos dos erros que levaram ao agravamento da pandemia não podem ser inteiramente atribuídos a presidentes ou primeiros-ministros. Mas é difícil para o público não culpar aqueles que estão no topo da cadeia de comando por eventos como a pandemia. Na sua opinião, como a atual crise de saúde pode afetar as eleições?
Ferguson – Em 2020, quando a pandemia se espalhou pelo mundo, foi muito tentador culpar o presidente [americano] Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro [britânico] Boris Johnson ou Narendra Modi da Índia pelas altas taxas de mortalidade nos países em que governavam. E muita gente fez isso. Esses líderes cometeram todo o tipo de erro, e não quero subestimar isso – às vezes parecia que havia uma competição para ver qual deles poderia ser o mais estúpido em relação à saúde pública.
Mas se analisarmos com cuidado, vemos que houve mortalidade alta em muitos países que não tinham líderes populistas no poder. A realidade é que o fracasso de vários países ocidentais, do Hemisfério Norte e Sul, teve maior relação com as falhas cometidas por aqueles [que ocupam cargos] na burocracia da saúde pública do que com decisões tomadas pelos presidentes.
Como tudo isso vai influenciar no Brasil é difícil de prever. Neste momento, meus amigos brasileiros parecem esperar a volta de Lula à Presidência e a derrota de Bolsonaro, mas não sou especialista em política brasileira. Direi apenas que, nos Estados Unidos, certamente foi a covid-19 que garantiu que Donald Trump não cumprisse um segundo mandato. Ele teria sido reeleito se não fosse a pandemia.
BBC News Brasil – Depois de ler seu livro mais recente sobre desastres globais (Catástrofe, da Editora Planeta), algumas pessoas o chamaram de pessimista. No momento atual, considerando tudo o que vivemos nos últimos anos e as previsões para o futuro, o senhor se sente pessimista?
Ferguson – Não creio que ‘Catástrofe’ seja um livro pessimista, pois inclusive ressalto que a possibilidade do mundo acabar é muito pequena. Os desastres que temos que enfrentar – e teremos que enfrentar novos desastres no futuro – não vão matar grandes proporções da humanidade ou acabar com nossa existência na Terra.
Mas posso pensar em algumas razões para preocupação no momento, entre elas o perigo da guerra na Ucrânia se transformar em um confronto maior e, potencialmente, em uma guerra nuclear. Posso pensar ainda em um cenário de nova pandemia, com uma doença ainda pior e mais mortal. Mas a mensagem do livro é que se estivermos cientes dos riscos, poderemos desenvolver tecnologia e conhecimento científico para lidar com eles.
O verdadeiro inimigo do sucesso é o fatalismo. Posso estar ciente dos riscos que enfrentamos, mas não sou fatalista. Sempre podemos agir para reduzir nossa vulnerabilidade e melhorar as chances de uma vida longa, próspera e feliz.