Thiago Lima, Doutor em Ciência Política (Unicamp), Professor do Departamento de Relações Internacionais, do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional e Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org)
Pode parecer estranho, mas o Brasil já foi um país mundialmente reconhecido por sua capacidade de combater – e vencer – a fome. Foram as coalizões governamentais lideradas pelo Partido dos Trabalhadores as responsáveis por criarem os arcabouços jurídicos, as dotações orçamentárias e as políticas públicas capazes de colocar em marchar diversos planos, programas e estratégias que, ao fim, conduziram a uma redução nunca vista da fome no Brasil. Efêmera, é verdade, mas certamente não desprezível na nossa História. Foram, também, no governo destas coalizões que burocracias e organizações da sociedade civil encontraram motivação e espaço ímpares para lutarem contra a insegurança alimentar e nutricional doméstica e internacionalmente.
Havia, naquelas coalizões governamentais, a premissa de que o combate à fome não poderia se restringir a um único país, especialmente quando este país é um território de fome crônica numa terra de abundância: condição típica de países do Sul Global, muitas vezes nascidos como colônias de exploração. Nesta perspectiva, era preciso difundir o imperativo ético de “Fome Zero” e construir apoio internacional em diversas dimensões para traduzir aquele imperativo em reformas e inovações nos regimes internacionais que incidem negativamente sobre a questão alimentar. Falo, por exemplo, dos arranjos geridos pela Organização Mundial do Comércio (OMC), pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA).
A transformação de uma ideia em política pública exige empenho de recursos humanos e orçamentários, mas também uma boa capacidade de coordenação. Coordenação esta que é mais difícil quando se fala de atores estrangeiros, com histórias, culturas e condições materiais muito diferentes. Neste contexto, a cooperação internacional é fundamental para criar pontes e vias de mão dupla sobre as quais, com o devido trânsito, cria-se confiança mútua e ação conjunta. Esta cooperação, no entanto, não é desinteressada. Por mais que aparente ser simplesmente a busca pelo desenvolvimento ou expressão de solidariedade, toda cooperação internacional responde a uma agenda doméstica, até porque é do âmbito doméstico que saem as autorizações executivas, os marcos legislativos e o dinheiro para viabilizá-las. Como retorno, esperam-se dividendos materiais e imateriais, por exemplo, na forma de apoio político.
De fato, as políticas públicas de cooperação internacional das coalizões lideradas pelo PT lograram expandir a influência brasileira nos temas agroalimentares. Talvez os maiores exemplos tenham sido as eleições de José Graziano da Silva e de Roberto Azevêdo para os cargos de Direção-Geral da FAO e da OMC, respectivamente. No rol das políticas de cooperação do Brasil, uma de grande saliência foi a ajuda alimentar humanitária. Prestada a povos estrangeiros, normalmente com a colaboração de países desenvolvidos e sob o manejo logístico do PMA, esta política demonstrava, concretamente, que o Brasil, enquanto agropotência, também estava em condições de contribuir para o combate à fome.
Contudo, toda política pública deve passar pelas fases de monitoramento, avaliação e ajuste, se necessário. Louvável que foi esta prática de solidariedade internacional, creio que a pesquisa que realizei sobre sua formulação e execução traz elementos relevantes para reflexão e para uma eventual reformulação. Isso porque uma das intenções originais desta política pública foi desviada por razões técnicas e políticas, as quais resumirei brevemente a seguir.
O Brasil já havia doado alimentos para estrangeiros em ocasiões anteriores, mas uma política pública de ajuda alimentar internacional foi algo inovador na história da política externa brasileira. Comandada por um setor do Itamaraty denominado de Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome (CGFome) e com apoio direto da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), entre outros órgãos da administração federal, a ajuda humanitária alimentar cresceu espetacularmente nos governos liderados pelo PT e o Brasil – um país historicamente faminto – se tornou um dos 5 maiores doadores de alimentos para o PMA. Entretanto, por pouco tempo.
Em primeiro lugar, o objetivo original era comprar produção da pequena agricultura familiar para que esta pudesse ser doada aos necessitados e necessitadas no exterior. Assim, o governo federal estaria apoiando, por meio de compras governamentais, a pequena agricultura brasileira e ajudando a combater a fome no exterior. O problema é que as regras do regime internacional de ajuda alimentar dificultaram este tipo de prática, porque os volumes (quantidade), a uniformidade e os processos de embalagem dos alimentos a serem doados destoam da capacidade dos pequenos produtores. Ou seja, a logística necessária para operações do tipo não fechava.
Em segundo lugar, o Brasil não possui uma lei permanente de ajuda humanitária. Isso quer dizer que toda doação de algum bem público brasileiro para estrangeiros precisa de uma lei (inclusive na forma de Medida Provisória) que a viabilize. Este processo, eminentemente político, não funciona nos tempos das catástrofes humanitárias, que são geralmente súbitas e demandam resposta rápida. Portanto, embora o governo tenha chegado a montar um Armazém Humanitário no aeroporto do Galeão (RJ) para prestar pronto socorro em crises estrangeiras, havia um hiato legislativo que comprometia sua eficiência em longo-prazo.
Em terceiro lugar, tal hiato legislativo só foi fechado – e provisoriamente – quando o Itamaraty decidiu que era preciso contar com o volume, a uniformidade e a capacidade de embalagem do grande agronegócio para viabilizar a política pública de ajuda humanitária. Necessidade técnica, mas também política. Afinal, foi somente com o empenho político da Bancada Ruralista que as leis que autorizavam doações de estoques públicos de alimentos, por alguns anos, foram autorizadas. Políticos que muito se afastam de ideais de Direitos Humanos, como Luiz Carlos Heinze (PP-RS), representante do latifúndio arrozeiro, foram atores-chave nesse processo legislativo.
Como se vê, a ênfase dada neste texto ao termo “coalizão governamental liderada pelo PT” procura enfatizar que foi necessário um acordo entre os setores mais progressistas e os mais conservadores para que o Brasil pudesse, de fato, se tornar um grande doador de alimentos. Porém, em quarto lugar, devemos apontar que a atuação conjunta no seio desta coalizão foi efêmera. O agronegócio se interessou pela doação internacional de commodities apenas quando os estoques de alimentos no Brasil estavam altos, ou seja, quando havia baixa demanda de compradores. Quando os estoques diminuíram, o apoio político à doação de alimentos também diminuiu. Esta não é uma dinâmica exclusiva do Brasil. Ao contrário: é a tradicional lógica que permeia boa parte das doações estadunidenses, lógica essa muito criticada pelos especialistas em questões humanitárias, pois o socorro aos flagelados não deve ficar ao sabor do mercado. Em outras palavras, uma política humanitária séria deve prever recursos estáveis para serem aplicados quando as catástrofes ocorrem, e não apenas quando os mercados estão fartos de arroz, milho, trigo etc.
Como sabemos, a coalizão liderada pelo PT terminou com o golpe parlamentar fortemente sustentado pela própria Bancada Ruralista. São recibos deste apoio, em suas formas institucionais, a eliminação da CGFome, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Diversas outras políticas de combate à fome vêm sendo desmanteladas e desidratadas. O resultado, do ponto de vista das Relações Internacionais, é que o Brasil jogou fora suas credencias para discutir, como protagonista, o mais grave problema mundial ao lado das guerras e da mudança climática: a Fome.
Como me disse em entrevista um funcionário do PMA: para jogar o jogo é preciso ter fichas. Parte importante das fichas, no plano internacional, são as ações de cooperação internacional lastreadas em políticas públicas domésticas exitosas. Neste sentido, se uma nova coalizão política assumir a Presidência e decidir colocar o Brasil de volta à condição de protagonista no tema do combate à fome, é possível que uma nova política de ajuda alimentar humanitária deva ser formulada. Felizmente, o conhecimento acumulado com a experiência histórica concreta pode fornecer bases mais sólidas para uma política pública de ajuda alimentar internacional mais eficiente, politicamente estável e progressista.
Sobre o tema, conferir artigo do autor publicado no Agrarian South: Journal of Political Economy
Lima, Thiago. “Brazil’s Humanitarian Food Cooperation: From an Innovative Policy to the Politics of Traditional Aid.” Agrarian South: Journal of Political Economy 10, no. 2 (August 2021): 249–74. https://doi.org/10.1177/2277976020970771.